A tia Lourdes, tal como a minha mãe (as duas únicas filhas dos meus avós maternos), teve uma educação bastante diferente da que era dada habitualmente às meninas de família. Ambas seguiram do liceu para a universidade e ambas concluiram, brilhantemente, cursos pouco procurados por mulheres, nessa época: Medicina a minha mãe, Belas Artes a tia Lourdes. Filhas de um advogado exigente e de gostos sofisticados - respirara ainda o crepúsculo do fausto proporcionado pelo cacau de São Tomé e Príncipe, vindo da roça da família - do pai receberam essa liberdade e esse desafio: serem autónomas, terem uma profissão. Da minha mãe falarei noutra altura destes apontamentos, hoje a ribalta é da tia Lourdes.
Desde muito cedo revelou talento para o desenho. Depois da escola António Arroio, estudou pintura e escultura em Lisboa e depois no Porto, onde o curso superior era mais conceituado. Foi contemporânea dos maiores nomes das artes plásticas nacionais, hoje considerados grandes mestres. Aluna aplicada e muito elogiada por professores e colegas, pelo traço forte e cheio de personalidade, acabou o curso com notas altíssimas e esperava-a um futuro sorridente no mundo que escolhera e onde se sentia como peixe na água. Praticou em ateliers famosos e tinha amigos divertidos e boémios, apesar do recato a que o seu estatuto e uma sociedade fechada a obrigavam.
Mas a vida trocou-lhe as voltas, como muitas vezes acontece. Ao escritório da Rua de S. Nicolau, na Baixa, onde o meu avô exercia advocacia, foi parar um estagiário muito especial: um goês, brâmane orgulhoso e de olhar penetrante, de seu nome Prabacar Visvambor Canencar (um nome que originou saborosas e infindáveis versões nas bocas por onde passava, na nossa família). Era um de muitos irmãos, todos rapazes, enviados pelos pais para a Europa e Estados Unidos para estudar, o que em Pangim não teriam conseguido fazer com igual sucesso. Ele foi o único que rumou a Portugal, para estudar direito. E a tia Lourdes apaixonou-se por aquele homem diferente, um novo desafio que lhe mudou a vida por completo. Correram o mundo em comissões de serviço dele, como juíz: por África e Ásia, dois anos em cada sítio onde os portugueses tinham posto o pé e a que chamaram seu, séculos antes.
Perdemo-los de vista por muito tempo, mas um dia voltaram. No porão do navio que os trouxe de Timor, uma enorme quantidade de quadros que a tia Lourdes pintara, bebendo nas mil cores e formas exóticas a inspiração daqueles anos de globetrotter. Faria uma grande exposição, quando chegasse a Lisboa. De lá, preparara as coisas e tudo estava a postos. Ainda tinha bons contactos. Mas o desatre aconteceu: o porão inundou-se e a água salgada arruinou as delicadas telas e aguarelas que ansiavam pelas luzes de uma galeria de arte. E já não houve exposição. E, muito pior do que isso, a tia Lourdes nunca mais quis pintar ou esculpir, fosse o que fosse. Começou a dar aulas de desenho e foi uma professora dedicada, por muito tempo. Hoje tem oitenta e seis anos, e continua uma mulher de armas.
Do tio Canencar, que já morreu há muitos anos, guardo na memória as conversas inteligentes que tinha connosco (não tinham filhos, e a sua paciência com crianças era limitada) os livros (muitos deles viajavam sempre com ele, em malas especiais que se transformavam em estantes provisórias, durante as viagens) e a iniciação às delícias da gastronomia goesa, de que era um fervoroso apaixonado. Essa veia de gourmet (também adorava a boa cozinha tradicional portuguesa) valeu-lhe uma cumplicidade com o meu pai que durou toda a vida de ambos. O tio Canencar levava-nos aos melhores restaurantes indianos de Lisboa e ensinava-nos a apreciar cada sabor, cada subtil mistura. Com ele aprendi, por exemplo, que um bom caril não é feito apenas com aquele pó amarelo que conhecemos (e onde pensamos que está tudo o que é preciso), mas com um lote de ingredientes frescos, escolhidos a dedo e em medidas sábias, que fazem desse prato uma especialidade requintadíssima. Cada família tem o seu segredo para o "caril", tal como acontece por cá com as receitas conventuais, por exemplo. Além de muito condimentada, a cozinha indiana é enriquecida com chutneys e achards que potenciam a riqueza dos pratos. São, geralmente, de confecção muito simples, mas é nas proporções dos ingredientes que está toda a diferença. Com o tempo, a tia Lourdes aprendeu a fazê-los na perfeição. Um deles - um chutney de coentros - é a receita que aqui deixo hoje.
1 bom molho de coentros; 2 colheres de sopa de coco ralado; 1 pimento verde cortado aos bocados; 1 bocado de gengibre ralado (mais ou menos 1 colher de sopa); 2 dentes de alho; 1 cebola pequena; sumo de 1 limão; sal qb; 1 colher de café de açucarMoer tudo com o pilão ou na picadora, até obter uma pasta boa para barrar. Guardar em frasco de vidro, de preferência no frigorífico (depois de encetar o frasco).
Manter fresco.
Nota: Este chutney é excelente para acompanhar carnes gordas, ou mesmo peixe. É uma óptima alternativa ao tradicional chutney de manga verde.