Já o disse aqui: todo o mulherio lá de casa (com a honrosa excepção da minha mãe) sempre gostou de cozinhar. De comer, nem se fala. Somos quatro irmãs e só um irmão, por sinal o mais novo e com uma enorme diferença de idade.
Na minha família, a cozinha sempre foi - à boa moda da província, tão cheia de atavismos cravados na pele como ferretes - um território de mulheres. Os homens das gerações até à minha sempre passaram por lá como turistas, com um misto de curiosidade, respeito e temor, mas também com a indisfarçável superioridade de quem não precisa de conhecer os meios para usufruir plenamente dos fins. Não me lembro nunca de ver o meu pai (para já não falar do meu avô...) a meter um dedo impaciente nas massas ainda cruas dos bolos do Natal, ou a destapar panelas e tachos ao lume, antecipando os prazeres que lhe abririam as portas do paraíso dali a uma ou duas horas. Quando muito, lembro-me talvez de vê-lo espreitar, em dias de festa, por uma frincha da porta da cozinha, inquirindo sobre o andamento das obras-primas que ali iam nascendo das mãos da Rosa e das suas coadjuvantes, em que nos incluíamos sempre. Jamais me lembro de tê-lo visto de avental, ao fogão ou sequer ajudando a trinchar as carnes. Não, nunca. O papel inquestionável do meu pai era o de juíz supremo, à cabeceira da grande mesa da sala de jantar, erguendo ou baixando o polegar às iguarias que lhe iam passando pelo palato. Era um verdadeiro gourmet: comia pouco e muito devagar, saboreando cada pedacinho do que tinha no prato com um deleite visível. O seu lema, que nos repetia sempre que nos mostrávamos impacientes com o arrastar das refeições, era: "À mesa nunca ninguém se fez velho". Hoje percebo-o e concordo com ele, mas na idade em que todos os minutos são poucos para a brincadeira, tanto tempo passado à mesa parecia-nos um absoluto desperdício.
Com estes exemplos, seria de esperar que o meu irmão não se mostrasse minimamente sensível às artes culinárias. Foi um beijamim mimado, um "menino nas mãos das bruxas", como se costuma dizer. Esperava-se o pior: uma atitude naturalmente machista, que decorresse de tantos cuidados e regalias de um principezinho super-protegido. Mas surpreendentemente (ou talvez não), aconteceu o contrário: o casulo confortável e seguro da cozinha, onde passou grande parte da infância, manteve intacta a sua atracção e ele acabou por ser o único de nós a levar a sério a paixão familiar, fazendo um curso de alta cozinha e decidindo-se por essa profissão. É ele que tem ressuscitado algumas receitas de família que já não fazíamos há anos, entre elas esta Marquisette - a melhor e mais sofisticada mousse de chocolate que comi até hoje. Dá algum trabalho, é verdade, mas as coisas boas da vida raramente vêm sem ele. Aqui fica o caminho para a delícia:
1. Torta: 6 gemas de ovos; 6 colheres de sopa de açucar; 1 colher de sopa de farinha 2. Mousse: 250 gr de bom chocolate preto em tablette; 100 gr de açucar; 175 gr de manteiga s/sal (derretida); 4 ovos Torta: Batem-se as gemas com o açucar, depois juntam-se as claras (em castelo firme) e no fim a farinha, envolvendo bem mas sem bater. Vai ao forno em tabuleiro untado. Desenforma-se, enrola-se ainda quente, com a ajuda de um pano húmido, e deixa-se arrefecer. Mousse: Derrete-se o chocolate (em banho-maria ou no microondas) e trabalha-se com a colher de pau até ficar um creme homogéneo. Deixa-se arrefecer um pouco, junta-se o açucar e depois a manteiga (que previamente se bateu muito bem, até ficar em creme), e finalmente as gemas e as claras em castelo. Depois bate-se muito bem tudo isto, com as varas ou batedeira eléctrica, e reserva-se. Corta-se a torta (já fria) em fatias de aproximadamente 1 cm de espessura, e forra-se com elas uma taça redonda, não apertando muito as fatias. No meio deita-se o creme de chocolate e vai ao frigorífico a gelar (o ideal é fazer de véspera, mas pelo menos 4 a 5 horas de frio são necessárias). Desenforma-se sobre um prato redondo e corta-se em fatias a partir do centro. Nota: É uma sobremesa cara e trabalhosa. Mas vale, posso garantir, cada cêntimo e todo o esforço que se gaste nela.