sábado, 20 de outubro de 2007

Empada de Pato à Sissi da Baviera










Éramos um bando. Indisciplinado, barulhento, alegre, muitas vezes quase maltrapilho, de tanto subir árvores e correr no campo, em completa liberdade. Entre rapazes e raparigas, todos primos direitos, éramos 17. De todas as idades, de todos os tamanhos, de todos os feitios. Juntávamo-nos sempre, ao jantar de Domingo, em casa da Avó. E era uma festa. Vinham os que moravam ali mesmo ao pé e os que moravam longe, os que ainda não tinham saído de casa e os que estudavam nos colégios internos - os mais velhos. O jantar na Avó obedecia a rituais sagrados: a grande mesa rectangular posta na diagonal da casa de jantar, para cabermos todos sentados; a divisão, a meio, entre os "crescidos" e os "miúdos" - um appartheid bem aceite por todos, até com algum alívio; a proibição de levantar da mesa até que a Avó o decretasse, com alguma solenidade. A longa espera - era como parecia à nossa sempiterna fome de crianças - até que as travessas chegassem ao nosso lado da mesa (o último a ser servido, claro), era compensada pela relativa liberdade de movimentos e tagarelice, já que o "controle" dos pais estava afastado e ocupado com conversas de adultos, do outro lado da barricada.
O bando tinha a sua hierarquia, bem definida pelas idades. E as regras eram simples e leoninas, como o são sempre nesses grupos: os mais velhos mandam, os mais novos obedecem. A minha prima Rosarinho era dos "do meio": nem dos primos mais velhos (que ditavam as regras) nem daqueles que eram considerados bebés e ainda não tinham voto na matéria. Esse era um dos seus azares, a idade. O outro, bem maior, era o facto de ser filha única. A única filha única, aliás. Era a mais vigiada, a mais vítima da ansiedade dos pais, a mais protegida de todos nós. Só quando conseguia diluir-se no bando se libertava um bocadinho da atenção excessiva de que era alvo. Foi dos primeiros de nós a urbanizar-se: depois de uma passagem de alguns anos pelo Alentejo, os meus tios foram viver para Lisboa. E foi na cidade que ela encontrou verdadeiramente o seu espaço: respirou fundo, tomou balanço e voou sozinha. Enfim, transformou-se numa mulher independente, segura, completamente autónoma. E divertida. Não é, exactamente, uma típica fada do lar. Nem faz questão disso, porque tem muito mais que fazer. Diz, com graça, que dos trabalhos domésticos só gosta de arranjar jarras de flores e que, nisso, "saíu à Sissi da Baviera, mas sem buço". Mas não é verdade. Também cozinha quando quer, e bem. Esta "Empada de Pato à Sissi" (que ela inventou e baptizou) é um bom exemplo disso.
Curiosamente, foi ela que herdou a casa da Avó, reduto das mais doces memórias de infância de todo o bando. Voltou às origens, pelo menos aos fins de semana. E não foi, certamente, por acaso.
½ pato cozido, desossado e desfiado (pela Maria, que esta é a parte chata)
1 embalagem de cogumelos frescos
1 molho grande de coentros
1 pacote de natas
2 embalagens de massa folhada fresca
(para uma forma de tarte de 26cm de diâmetro)

Salteio os cogumelos em azeite e 3 ou 4 destes de alho, junto o pato e os coentros. Para aveludar, junto 1 pacote de natas. E tempero… com pozinhos de perlimpimpim (pimenta, cebolinho, e sei lá, o que apetecer na altura).
Ponho na forma de tarte que já forrei com uma das massas, cubro com a outra massa, e forno com a empada.
É um sucesso e fica lindamente com uma boa salada de tudo (alface de várias qualidades, espinafres crús, rúcula, nozes, passas, e mais o que a imaginação quiser…)

14 comentários:

Anónimo disse...

A receita promete ser uma delícia! Aliás como qualquer uma das receitas que aqui tens posto. Tenho de ver se começo a fazer algumas! A da marquisette não posso perder... então se vem com os segredos revelados!
Nesta achei graça à parte de ser a Maria a desossar e desfiar o pato, por ser chato. A quem o dizes, faço o mesmo com depenar as perdizes e descascar os marmelos e outras coisas de que não gosto, ou não tenho paciência, apesar de adorar cozinhar!

beijinhos e bons manjares

Carla disse...

Polvilhas as tuas deliciosas receitas com belas histórias de família que nos tornam pequenos intrusos dessas vivências.
Mais uma para experimentar e com carácter de urgência.
carla

ana v. disse...

Sofia, quando existe uma Maria é óptimo, claro. Os cozinhados têm sempre o trabalho de sapa, que ninguém gosta de fazer. Mas nem sempre há Marias, não é? ;)

Já cá me chegou o cheirinho dos teus doces...

Carla,
Obrigada. É divertido partilhar estas histórias também.

beijos para as duas
ana

Anónimo disse...

Prima,
Obrigada por me teres feito reviver os nossos jantares de domingo em casa da Avó; e obrigada pela descrição que fazes de "moi"! Obrigada também por manteres a menção à minha Maria. Sem ela, acho que nem a empada faria...
E deixa-me só esclarecer, para o caso de sermos lidas por alguns fanáticos da Sissi, que a menção ao buço só se deve ao facto de a lindíssima Romy Schneider, ainda adolescente, na trilogia dos anos 50 do século passado sobre a imperatriz da Baviera, apresentar um considerável bigodinho...

Ah, e façam a empada e digam o que acharam, tá bem?
Beijos e bon appetit!
Rosarinho

ana v. disse...

Rosarinho,
Acho que tens toda a razão: a Romy S. era bonita mas tinha mesmo buço, e já ameaçava transformar-se numa grande e anafada fraulein, se não se tivesse afastado da ribalta. Além disso, era péssima actriz. Coitada, teve um fim triste. Sabias que teve uma criada de quarto da Azambuja (!!), que se fartou de contar histórias dela depois? Só não sei se enriqueceu com isso.

Mad disse...

Ahá tugas azambujenses, que até à Romy Schneider chegam! Se fosse hoje, aposto que esta Maria tinha um blog de sucesso.

james emanuel de albuquerque disse...

Belo texto.

Delícia.

Um abraço.

tcl disse...

Acabaste de me dar uma ideia: vou cravar uma empada de pato à Rosarinho, está visto!

ana v. disse...

Então faço uma proposta à Rosa: já que nos apresentaste virtualmente, faz o mesmo na vida real: convida as duas para comer a empada! Boa?

Anónimo disse...

Tenho de experimentar.

Não sou apreciadora de pato, mas todos na família gostam.

Anónimo disse...

Ana
Perdi-te nestes anos todos e encontrei-te, agora, por pura casualidade bloguista.
Para além da surpresa, boa, o prazer de te ler e de te saber escritora, poeta e gastrónoma praticante e empenhada em divulgar o que de bom se vai fazendo por aí nas cozinhas de cada um.
As tuas introduções magníficas põem-nos literalmente sentados à mesma mesa das tuas recordações de Família, atrevendo-me mesmo a dizer que superam as receitas, isto nesta fase e sem as ter (a)provado.
Reparei que a tua última já tem um mês, pelo que te incito a continuares e a não perderes o ritmo, pois percebi pelos comentários que tens leitores fiéis (hoje ganhaste mais um) e quem sabe se não reúnes material suficiente para publicares em livro, que seria um sucesso garantido?
Tens de recomeçar e pelo princípio: a receita dos Pastéis de Nada, que, pelo que me pareceu, não chegaste a publicar.
Beijos
PS: como dizia um palhaço da nossa praça "vou andar por aí" pois já pus o teu blogue na minha short list.

Mad disse...

Viste??????

ana v. disse...

Olá Ratatouille,
Em primeiro lugar, obrigada pelas palavras simpáticas. Tens razão: tenho que actualizar isto e vou fazê-lo em breve, assim que estiver instalada. A ideia é mesmo fazer disto um livro, quando tiver receitas suficientes e equilibradas em em variedade. Dá trabalho, não pelas receitas mas pelas histórias, e não quero fazer isto de qualquer maneira. Mas agora o mais importante: quem és tu, que "me perdeste nestes anos"? Não faço a menor ideia e o que deixas aqui não me dá grandes pistas. Se não quiseres identificar-te em público por qualquer razão, pelo menos fá-lo por mail para eu saber com quem estou a falar, ok? Pelo que percebo, também és bloguista. Dá-me ao menos uma pista.
Beijos

FMS disse...

Pato, que bom :)