sexta-feira, 27 de julho de 2007

Alcachofras Tiro-e-Queda














A minha tia-bisavó Mimi dizia que esta entrada de alcachofras era "tiro e queda" para impressionar qualquer homem. O tiro era dela, claro está, e a queda, que se pretendia sem retorno, de um candidato à sua mão.

Era o tempo em que os maridos "se conquistavam pelo estômago", como estratégia para chegar-lhes ao coração (às vezes só à carteira, mas o empenhamento era o mesmo). Acho que ela nunca se teria atrevido a classificar esta receita como "afrodisíaca", nem sei mesmo se saberia o significado da palavra, mas, na defesa do uso desta arma mortífera, era a qualquer coisa com esse sentido que as suas palavras apelavam. A tia Mimi devia ser perita na matéria, porque casou três vezes. Nunca lhe perguntei se usou esta receita de todas as vezes, ou se se terá dado ao trabalho de variar na poção mágica.

Devo acrescentar que ela não entrava na cozinha para confeccionar coisa nenhuma, mas apenas para "orientar" a cozinheira bonacheirona e cúmplice, que a adorava. Mas fazia gala em dizer que, em dias de visitas, não saía nada da cozinha sem passar pelo seu crivo implacável. E a coisa impressionava, porque a gorda Ermelinda cozinhava mesmo muito bem.

A verdade, nada irrelevante, é que a tia Mimi tinha uma preciosa ajuda da natureza: era uma mulher linda, de quem se dizia fazer virar todas as cabeças ao subir o Chiado. Era coquette, divertida e esperta quanto bastasse. Não seria um espírito iluminado e culto, mas não me parece que alguma vez tenha sentido essa lacuna, por si própria ou para chegar aos outros. Sempre impecavelmente vestida (nas melhores lojas de Lisboa ou de Paris), lembro-me de que cheirava a alfazema e madeiras exóticas, odores reunidos numa mistura preparada em exclusivo para ela e que ela própria baptizara de "Vertige". O nome não seria, como se calcula, completamente inocente.

O primeiro marido, curiosamente, morreu de uma congestão. Mas não consta que tenha sido a comer estas alcachofras, já que o seu estatuto de presa estava garantido havia sete anos quando se deu a tragédia. Mimi enviuvou aos vinte e quatro anos, muito a tempo, portanto, de brincar de Lucrécia Bórgia por mais alguns. Três anos depois, cumprido o luto obrigatório, estava novamente casada com um engenheiro de pontes, amigo do primeiro marido e muito solícito na recuperação da viúva. E quando este foi encontrado no fundo de uma ravina, em Angola, pouco mais de dois anos depois do enlace, a tia Mimi chorou algum tempo e depois consolou-se com o jovem médico de família, uma aquisição útil para uma velhice confortável. Teve-a, de facto, porque morreu aos noventa e seis anos e ainda a conheci bonita e doce. Talvez porque, com este último marido, foi finalmente muito feliz.

Anote a fórmula mágica, quem sabe se um dia lhe será útil também:
12 alcachofras pequenas
3 dentes de alho picados
1 limão
200g de presunto em cubinhos
azeite q.b.
sal e pimenta
200g de pinhões torrados

Torrar os pinhões numa frigideira sem gordura e reservar. Tirar as folhas exteriores das alcachofras e cortar as pontas, de cima e de baixo, deixando ficar só as folhas brancas. Esfregar estas muito bem com um limão cortado ao meio, para não escurecerem. Cozer em água abundante, com muito sal, por cerca de 15 min ou até ficarem tenras. Escorrer bem. Refogar o alho, juntar o presunto e depois as alcachofras para aquecer. Corrigir o tempero, se precisar, e envolver tudo, juntar os pinhões e servir quente.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Caldo da meia-noite













Aprendi esta receita no Alentejo, no tempo em que lá morei.

Recém-casada (com 21 anos !), fui viver para um antigo convento lindíssimo, mesmo em cima da barragem do Maranhão. Um sítio deslumbrante, uma casa de fazer inveja a qualquer um (à beleza somava-se o mistério, porque metade do convento estava em ruínas e apenas a outra metade era habitável) mas também um tédio difícil de engolir para uma urbana activa como eu, habituada à capital e com o firme propósito de iniciar uma carreira profissional. A vida altera-nos os planos sem cerimónias, e tudo me saíu ao contrário: não havia nada para fazer ali a não ser admirar a paisagem, comer e beber. Enfim, tive que inventar ocupações: primeiro atirei-me à casa, que decorei e modifiquei até nada mais ter para alterar. Arranjei quartos e casas de banho (os duches ainda eram daqueles de balde de zinco e corrente para puxar e deixar sair a água); comprei um frigorífico a petróleo (não havia electricidade, a não ser a de um gerador que se desligava às dez da noite) e um fogão novo; do magnífico celeiro abobadado, de chão de laje e paredes de 1,5 m de espessura, fiz uma sala a perder de vista; da antiga cozinha, enorme, uma sala de jantar.

Enquanto duraram as obras da nova cozinha aprendi com a minha caseira a cozinhar na lareira, com trempes de ferro e tachos de cobre e de barro colocados directamente sobre as brasas. Com ela aprendi também a usar o forno de lenha, a fazer queijo fresco com cardo apanhado no campo e, mais importante do que tudo isso, a conhecer e usar as mil ervas com que os alentejanos aromatizam os seus cozinhados. Para cada prato há uma erva específica, que lhe dá um sabor especial: para o peixe de rio, o funcho; para o cabrito, o alecrim; e por aí fora, ou estaria aqui todo o dia a enumerar pratos e ervas. Toda a cozinha portuguesa é boa, mas só no Alentejo se aproveita assim ao máximo todos recursos que a natureza dá. É a imaginação criada pela necessidade, e não há maiores inventores do que aqueles que criam a partir do nada.

Foram 5 anos de uma aprendizagem de vida e de descoberta de um mundo quase perdido no tempo. Não nego que a adaptação não foi fácil. Eu era muito nova e sentia-me presa ali, e só muito mais tarde viria a apreciar devidamente aqueles anos. Por outro lado, tinha a idade certa para viver tudo aquilo como uma aventura excitante: falo de uma época difícil da nossa história recente - a devolução das terras ocupadas aos seus donos, no período pós reforma agrária - em que quase todos os dias recebia ameaças e insultos pelo telefone e em que estava praticamente sozinha até à noite num casarão isolado, semi abandonado e iluminado apenas por velas e candeeiros de petróleo. Hoje guardo gratas lembranças desses tempos de um far west que não era ficção e a memória de ensinamentos preciosos, que fizeram de mim alguém mais preparado para o que der e vier, em quaisquer circunstâncias. Para além, claro, da descoberta de uma paixão que nasceu muito antes, mas só ali se revelou totalmente: a cozinha.

O caldo da meia noite era normalmente servido à ceia, como o nome indica, nas noites de muito frio ou quando tínhamos visitas inesperadas. É uma alternativa original à sopa alentejana que todos conhecem.

Pique bem um ramo de salsa e outro de coentros e ponha numa tijela, com 150g de pão ralado, 150g de queijo duro alentejano também ralado (pode também ser parmesão) e 75g de farinha. Misture bem, tempere de sal, pimenta e noz moscada e junte 4 ovos inteiros ao preparado, voltando a misturar tudo com uma colher de pau. Com as mãos ligeiramente enfarinhadas faça pequenas bolas (do tamanho de uma noz) e disponha-as num prato ou tabuleiro salpicado de farinha, de maneira a não se pegarem umas ás outras.
Prepare 1,5 l de caldo de galinha (pode usar um cubo Knorr ou ferver restos de um frango ou galinha nessa quantidade de água) e, quando estiver a ferver bem, vá deitando dentro as bolinhas com cuidado. Quando sobem à superfície, está pronto. Corrija o tempero e sirva bem quente, numa terrina, com mais queijo ralado por cima. Se quiser fazer deste prato uma refeição sirva sobre pão caseiro cortado fino e ovos escalfados, dispostos previamente no prato.

Aquece o corpo e a alma, acredite.